Um relatório produzido pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP apresenta dados inéditos sobre diferentes tipos de contato entre crianças e adolescentes e a polícia no município de São Paulo. Os resultados demonstram que a discriminação racial e a seletividade das abordagens policiais estão presentes desde cedo na vida das crianças e adolescentes, e confirmam que é na mais tenra idade que os jovens negros se tornam alvos do policiamento ostensivo e das formas mais violentas de ação policial.

O relatório “A experiência precoce e racializada com a polícia” foi publicado no site do NEV e será lançado no dia 31 de agosto, às 14 horas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“Os brancos são muito menos parados [pela polícia] do que os pretos. O relatório chama a atenção para um debate fundamental de longo prazo, que é o da abordagem policial desproporcional por raça”, aponta Renan Theodoro, um dos organizadores do relatório, que ainda lembrou que a pesquisa começa em uma faixa etária em que são considerados crianças aos 11 anos.

Metodologia

Os dados foram coletados pelo Estudo de Socialização Legal de São Paulo (SPLSS) como parte do projeto Construindo a Democracia no Dia a Dia: direitos humanos, violência e confiança nas instituições, desenvolvido pelo NEV. Cerca de 800 jovens, entre 11 e 14 anos, matriculados em 120 escolas públicas e privadas da cidade de São Paulo, foram acompanhados por quatro anos.

Os estudantes responderam a um questionário com aproximadamente 30 questões uma vez por ano, entre 2016 e 2019. Todos nasceram no ano de 2005 e tinham 11 anos de idade quando foram entrevistados pela primeira vez, em 2016. O questionário abordou desde a relação com a polícia por meio da própria escola, como o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd), até experiências com abordagens policiais.

O que os dados revelam

O relatório aponta que muito cedo, já aos 11, 12 e 14 anos de idade, adolescentes pretos chegaram a ser duas vezes mais abordados pela polícia, mesmo sendo uma parcela significativamente menor de participantes da pesquisa.

No primeiro ano de levantamento, 47,13% dos participantes eram brancos, 27,25% eram pardos, 11,50% eram pretos, 5,13% indígenas, 2,75% eram descendentes de asiáticos e outros 6,25% não souberam ou não quiseram declarar. Apesar de não representarem a maior parcela de entrevistados, o contato com a polícia foi maior entre os jovens autodeclarados pretos. Em 2016, quando os jovens participantes tinham 11 anos de idade, 18,24% dos pretos foram parados pela polícia. Para fins comparativos, entre todos os pretos participantes da pesquisa naquele ano, 27,47% foram parados pela polícia, contra 18,83% de brancos e, do total de pardos, 12,84% foram parados.

Considerando todos os anos em que a pesquisa foi realizada, 68,82% dos participantes nunca foram parados pela polícia, 20,21% foram parados ao menos uma vez em um único ano, 5,40% parados ao menos uma vez em dois anos, 4,32% parados ao menos uma vez em três anos e 1,23% foi parado ao menos uma vez todos os anos, dos 11 aos 14 anos de idade.

Abordagens

A pesquisa dividiu a experiência das crianças e adolescentes com a polícia em três categorias: contato indireto – quando ele ou ela viu uma abordagem; contato direto – que variava desde a participação em alguma campanha ou palestra policial até ser parado, revistado ou levado para a delegacia; e por fim vitimização causada pela polícia – indicando situações de xingamentos, agressões e ter uma arma apontada em sua direção.

De todos os pretos da amostra, 21,51% foram revistados pela polícia. Já entre os brancos, essa experiência atingiu 8,33%, e entre pardos, 9,74%. Somente no ano de 2016, adolescentes autodeclarados pretos foram 25,71% dos que afirmaram ter sido levados para a delegacia, frente a 11,37% de participação na amostra. Já no ano de 2019, somente 8 jovens responderam ter sido agredidos pela polícia, no entanto 7 eram negros.

“A gente sabe que a polícia tem abordagens diferentes a depender de questões como raça e cor, e isso é entrecruzado com a condição socioeconômica. É um estranhamento da nossa parte saber que a polícia chegaria a parar na rua uma criança de 10 a 11 anos”, afirma Theodoro. Para ele, a população está sendo exposta desde muito cedo à violência racial institucional.

Além do resultado da pesquisa com crianças e adolescentes, três ensaios compõem a parte final do relatório. Os dois primeiros ilustram como jovens representam as experiências vividas em seus contatos com a polícia e o modo como as polícias, em especial a militar, silenciam a presença do racismo em seus contatos com cidadãos e cidadãs. O terceiro ensaio aborda estratégias para interromper a violência contra crianças. De acordo com a publicação, a percepção de que há discriminação racial na ação policial foi presente em todos os grupos sociais: meninos e meninas, brancos, pretos e pardos.

Anuário Brasileiro

De acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 50% das vítimas de morte violenta intencional tinham entre 12 e 29 anos. Somente no ano de 2021, mais da metade dos mortos em decorrência de intervenção policial tinha entre 12 e 24 anos, sendo 8,7% entre 12 e 17 anos e os outros 43,6% entre 18 e 24 anos de idade, respectivamente.

De outro lado, um estudo recentemente realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que as mortes de adolescentes por intervenção policial caíram 66,7% no Estado de São Paulo após implementação das câmeras operacionais portáteis. Mesmo assim, a polícia de São Paulo matou 273 jovens, entre 15 e 19 anos, nos últimos quatro anos.

*Com informações do Jornal da USP

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU – ODS 10 – Redução das Desigualdades.

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