Se havia indecisos e frustrados no eleitorado argentino, essa ala acabou por mostrar a sua face neste domingo, 19. O ultraliberal Javier Milei, do partido La Libertad Avanza, foi eleito presidente com 57% contra 43% do peronista Sergio Massa (União por La Patria). Da chamada Geração Z, ou Geração Zap, que no ano da grande crise argentina em 2001 eram bebês ou sequer haviam nascido, muitos são eleitores de Milei. Estes jovens conheceram o ultradireitista há cerca de dois ou três anos por meio de programas de televisão e, principalmente, das redes sociais.

“A ala mais jovem acabou comprando o discurso do Javier Milei. Um discurso, aliás, bem fora da curva, de uma linha mais radical e que entra em rota de colisão com muitos dos governos da América Latina”, avalia o professor de História e Geopolítica, Norberto Salomão, do podcast Sagres Internacional.

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Segundo o professor, são estes mesmos jovens que jamais presenciaram ou “trazem a carga” de uma ditadura militar, por exemplo, que ocorreu entre 1976 e 1983. A fala da vice de Milei, Victoria Villarruel (48) ao defender uma “tirania” como salvação para a crise que vive a Argentina, ilustra bem esse pensamento.

“O jovem não traz a carga do que representaram as ditaduras na Argentina. A vice do Milei elogia a ditadura. Ela é inclusive filha de um dos generais do período da ditadura na Argentina. Assim como aconteceu no Brasil, há uma espécie de revisionismo histórico e de se entender que a ditadura foi para o bem, para evitar que a região fosse ocupada pelos comunistas, o que depois demonstrou que não era verdade porque quando houve o processo de reabertura não foram comunistas que chegaram ao poder, apesar de eles tentarem tipificar os governos progressistas como governos comunistas como o de Cuba ou como o que tem acontecido na Venezuela. No Brasil o caminho foi bem diferente, da mesma forma que em outras regiões como a Bolívia, Peru, como está sendo agora no Chile, na Colômbia”, analisa Salomão.

América Latina

A política nos países latino-americanos tem atualmente o seguinte cenário: México, Honduras, Panamá, Nicarágua, Venezuela, Colômbia, Peru, Brasil, Bolívia e Chile com governos de posicionamento mais à esquerda. Enquanto isso, Guatemala, El Salvador, Costa Rica, Equador, Paraguai, Uruguai e agora a própria Argentina, com espectro de direita ou extrema direita.

Ao longo da campanha, Milei chegou a dizer que não dialogará com “comunistas”. Após a confirmação das urnas, Lula parabenizou as instituições democráticas da Argentina, mas não mencionou o nome do vencedor.

Norberto Salomão não acredita que o presidente eleito romperá com os governos, dadas as semelhanças no discurso do ultraliberal com o do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2018.

“Em 2018 tivemos o Jair Bolsonaro e os próprio filhos criticando a China, como fazia Donald Trump, por exemplo, dizendo que não manteriam negócios com a China. A gente viu que, na prática, não foi o que aconteceu. A China continua a ser nossa grande parceira econômica. O Brasil é o maior parceiro da Argentina aqui na região. Quer dizer, não tem muito como ele [Milei] romper com o Brasil”, afirma. “Se ele quiser fazer muita loucura, não vai se manter por muito tempo no poder”, complementa.

Para se ter uma ideia, de janeiro a outubro deste ano, as exportações do Brasil para a Argentina somaram US$ 14,9 bilhões. Isso corresponde a 5,3% do valor total exportado pelos brasileiros no período.

Governabilidade

Este será um dos, senão o principal desafio que o presidente eleito terá pela frente para comandar a Argentina. Milei, que traz consigo ideias radicais como dolarização da economia, fim do Banco Central e saída do Mercosul, pode ter no parlamento o principal obstáculo para implementar tais promessas.

“À medida em que ele fez alianças, ele disse que não faria, mas acabou fazendo, ele gerou uma ruptura não só dentro de seus próprios quadros como também dentro daqueles que passaram a apoiá-lo. Por exemplo, no caso da [Patricia] Bullrich, que foi a candidata pelo grupo do [Mauricio] Macri, houve divisões internas, ou seja, uma insatisfação considerável com esse tipo de aliança. Não significa que no Congresso argentino ele terá o apoio de toda bancada do grupo do Macri, da Bullrich”, analisa.

O partido de Milei, o LLA, que não tinha mais que três deputados no Congresso, hoje, no entanto, possui 34. No Senado, oito representantes onde não havia nenhum. Para Norberto Salomão, o problema de “despertar leões”, expressão usada pelo ultraliberal em seus discursos de campanha, é como controlar essas feras depois.

“Esse número ainda é muito pouco no parlamento, mas é um crescimento extraordinário. Aquela onda da ultradireita que já vinha da Europa passando por outras regiões chega à América primeiro com Trump, depois com Bolsonaro e agora com Milei”, conclui.

Vale lembrar que o Congresso argentino não possui Centrão como ocorre com os partidos no Brasil, cujo parlamento reúne representantes de centro, direita e centro-direita e costuma se aliar a governos em troca de espaços de poder.

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